Os transtornos alimentares são condições psicológicas complexas que afetam profundamente o comportamento alimentar, saúde física e mental. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) é uma referência internacional desenvolvida pela Associação Americana de Psiquiatria. Tal qual, passou por várias atualizações para refletir avanços científicos desde sua primeira edição em 1952. Atualmente, o DSM-V é a versão mais recente.
Os transtornos alimentares descritos no DSM-V destacam a complexidade dessas condições e a necessidade de uma abordagem multidisciplinar. Sobretudo, combinar intervenções nutricionais com suporte psicológico é vital para a recuperação e melhoria da qualidade de vida dos pacientes.
1. Pica
É um transtorno alimentar que se caracteriza pela ingestão persistente de substância não nutritiva, não alimentar e inapropriada ao estágio de desenvolvimento do indivíduo pelo período mínimo de um mês.
Comumente, a manifestação inicial desse transtorno ocorre na infância. Porém, há relatos de casos que acontecem na adolescência e vida adulta. O curso dessa doença pode ser prolongado e resultar em emergências médicas. Por vezes, causa obstrução intestinal, intoxicação, perda aguda de peso ou até mesmo morte, dependendo do tipo de substância ingerida.
O diagnóstico de pica pode ser adicionado a outros transtornos mentais somente se o comportamento alimentar for suficientemente persistente e grave para justificar atenção clínica. No caso de anorexia nervosa, muitas vezes, pode ocorrer a ingestão de lenço de papel na tentativa de controlar o apetite. Contudo, não se aplica o diagnóstico de pica como diagnóstico primário.
2. Transtorno de ruminação
É um transtorno alimentar que se caracteriza pela regurgitação do alimento depois de ingerido. O alimento previamente deglutido é trazido de volta à boca sem aparente náusea, ânsia de vômito ou repugnância. O alimento pode ser remastigado ou simplesmente ejetado da boca. A caracterização desse transtorno é feita quando esse comportamento se manifesta várias vezes por semana pelo período de um mês.
Esse transtorno pode ser diagnosticado por toda a vida, especialmente em indivíduos que apresentam deficiência intelectual também. Por vezes, o diagnóstico é feito baseado no autorrelato ou por informações colaborativas de pessoas próximas.
É muito importante diferenciar a regurgitação que ocorre nesse transtorno de outras doenças. Por exemplo, gastroparesia, estenose de piloro e hérnias de hiato têm manifestações semelhantes. Outra consideração a ser feita é que pacientes com anorexia nervosa ou bulimia, também, usam o expediente de regurgitação como meio de livrar-se das calorias ingeridas em virtude da preocupação com o ganho de peso.
3. Transtorno Alimentar Restritivo / Evitativo (TARE)
É um transtorno que se caracteriza por falta aparente de interesse pela alimentação. Assim, há esquiva baseada nas características sensoriais do alimento ou preocupação com consequências aversivas dos alimentos. Nessa situação, ocorre fracasso clinicamente significativo de satisfazer às demandas de ingestão energética adequada por meio de ingestão oral de alimentos. Esse termo substitui e amplia o termo utilizado no DSM-IV como transtorno alimentar da primeira infância.
Perda significativa de peso ou insucesso em ganho de peso esperado são aspectos observados no TARE. Além disso, verifica-se deficiência nutricional significativa, dependência de alimentação oral ou suplementos e uma interferência marcante no funcionamento biopsicossocial. É preciso descartar se o alimento preterido está disponível e é culturalmente aceito para caracterizar esse transtorno. Ainda assim, é preciso excluir outras doenças como doenças gastrointestinais, intolerâncias alimentares, alergias e até mesmo anorexia e bulimia.
A falta de interesse em alimentar-se e a evitação baseada em características sensoriais do alimento desenvolvem-se, mais comumente, na fase de lactante ou na primeira infância e podem persistir na idade adulta. Já a evitação relacionada às consequências aversivas pode ocorrer em qualquer idade.
Transtorno de ansiedade e obsessivo-compulsivo são comorbidades mais comumente associadas ao TARE. Do mesmo modo, os transtornos de neurodesenvolvimento (espectro autista, déficit de atenção, hiperatividade) e deficiência intelectual fazem parte dessa lista.
4. Anorexia nervosa
Esse transtorno alimentar tem três características diagnósticas importantes. Primeiramente, o paciente faz restrição persistente da ingesta calórica levando a um peso significativamente baixo para a idade, peso e trajetória do desenvolvimento. Segundo, o paciente tem medo intenso de ganhar peso e, terceiro, a perturbação na percepção do próprio peso ou forma.
Os tipos de anorexia nervosa são restritiva e compulsão alimentar purgativa. No primeiro, a perda de peso é conseguida com dieta, jejum ou exercícios excessivos. No segundo, o paciente se envolve em episódios de vômito induzido, uso indevido de laxantes, diuréticos ou enema. É possível especificar a gravidade desse transtorno dependendo do Índice de Massa Corporal (IMC) em adultos ou do percentil de IMC em crianças ou adolescentes.
A anorexia nervosa começa, frequentemente, na adolescência ou na idade adulta jovem. Raramente, inicia antes da puberdade ou depois dos 40 anos, apesar de relatos nessa faixa etária. O gatilho costuma ser um evento estressante na vida, mas tem curso e desfecho diversos. A prevalência desse transtorno é maior entre as mulheres e o risco para suicídio é elevado.
Existem vários marcadores diagnósticos que ratificam a identificação de anorexia nervosa. Os principais são leucopenia, anemia e níveis aumentados de ureia, colesterol e enzimas hepáticas. Além disso, há níveis diminuídos de magnésio, zinco, fósforo, amilase, tri-iodotironina, estrogênio e testosterona. Bradicardia é observada no eletrocardiograma e redução significativa do gasto calórico em repouso. O achado mais marcante em relação ao exame físico é a emaciação com hipotensão e hipotermia.
Outras possíveis causas de baixo peso corporal ou redução significativa de peso são consideradas para o diagnóstico diferencial de anorexia. Por exemplo, verificar as condições médicas como doença gastrointestinal, hipertireoidismo, câncer e AIDS. Igualmente, observar transtorno depressivo maior, esquizofrenia, transtornos por uso de sustância, fobia social, transtorno obsessivo-compulsivo e transtorno dismórfico corporal.
5. Bulimia nervosa
Esse transtorno alimentar se caracteriza por três aspectos. Um deles é o paciente ter episódios recorrentes de compulsão alimentar. Segundo, são os comportamentos compensatórios inapropriados e recorrentes para impedir ganho de peso. Terceiro, é a autoavaliação equivocada sobre o próprio peso e forma. A bulimia nervosa está caracterizada se os episódios de compulsão alimentar e os comportamentos compensatórios ocorrerem, pelo menos, uma vez por semana por três meses.
O método purgativo mais comum utilizado pelos pacientes com bulimia é a indução de vômito. Esse ato não apenas provoca a sensação de alívio do desconforto gerado pela compulsão alimentar, como também diminui o medo de engordar. Às vezes, métodos purgativos mais raros como uso de enemas após episódio de compulsão alimentar, uso de diuréticos e laxantes, jejum e exercício físico excessivo são relatados.
A bulimia nervosa, também, começa seu curso na adolescência ou na idade de adulto jovem assim como a anorexia nervosa. Raramente, esse transtorno alimentar se inicia antes da puberdade ou depois dos 40 anos. Nesse caso, o gatilho mais comum costuma ser um episódio de dieta para perder peso. Mas, eventos estressantes na vida podem precipitar a ocorrência de bulimia também. O curso dessa doença pode ser crônico ou intermitente com períodos de remissão alternando com períodos de compulsão alimentar. Da mesma forma, a prevalência desse transtorno é maior entre as mulheres e o risco de suicídio é alto.
5.1. Definição de compulsão alimentar
Entende-se compulsão alimentar como a ingestão de uma quantidade de alimento definitivamente maior que a maioria dos indivíduos consumiria em um período determinado – duas horas, por exemplo – e sob as mesmas circunstâncias. Além disso, existe uma sensação de falta de controle sobre a ingestão alimentar durante esse período. Essa situação gera uma sensação de vergonha ao paciente que tenta esconder seu comportamento. Portanto, os episódios de compulsão ocorrem de maneira discreta e de forma isolada. Parece não haver uma predileção por alguma coisa específica com relação ao alimento consumido. Por vezes, o paciente tende a consumir alimentos que não consumiria em outras situações.
5.2. Compulsão alimentar em outros transtornos alimentares
Outras doenças podem apresentar episódios de compulsão alimentar, mas devem ser diferenciados de bulimia nervosa porque não preenchem os outros critérios diagnósticos. São os casos de anorexia nervosa tipo purgativa, transtorno de compulsão alimentar, síndrome de Kleine-Levin, transtorno depressivo maior com aspectos atípicos ou transtorno borderline. Não existe um marcador diagnóstico para bulimia nervosa. Porém, é comum que esses pacientes tenham níveis séricos diminuídos de cálcio, cloro e sódio. Assim também, níveis alterados de alcalose metabólica, quando o método purgativo for o vômito ou acidose metabólica e quando a purgação for feita pelo uso de laxantes ou diuréticos. Também, pode ocorrer aumento de amilase sérica, particularmente a isoenzima salivar. Raramente, há achados físicos relevantes nesse transtorno. Mas, a inspeção da boca pode mostrar perda significativa de esmalte dentário ou dentes lascados e corroídos se a purga for o vômito.
6. Transtorno de compulsão alimentar
Esse transtorno alimentar se caracteriza, essencialmente, por episódios recorrentes de compulsão alimentar por pelo menos uma vez por semana por três meses. Além disso, o paciente sente uma sensação de falta de controle sobre a ingestão alimentar durante esse período. A definição de compulsão alimentar é a mesma referida na bulimia nervosa. Ou seja, a ingestão de uma quantidade de alimento definitivamente maior que a maioria dos indivíduos consumiria em um período determinado – duas horas, por exemplo – e sob as mesmas circunstâncias.
Três ou mais aspectos caracterizam o transtorno de compulsão alimentar, além do sofrimento marcante em relação aos seus episódios. Entre eles, é o fato de comer mais rapidamente do que o normal e grandes quantidades de alimento mesmo sem a sensação física de fome. Assim também, comer até se sentir desconfortavelmente cheio. Frequentemente, comer sozinho por vergonha do quanto está comendo ou sentir desgostoso de si mesmo, além de sentir-se deprimido ou muito culpado em seguida.
É importante diferenciar o transtorno de compulsão alimentar de outras condições que apresentam o comer compulsivo recorrente como característica essencial. A diferença está no fato de não haver método purgativo na compulsão alimentar em comparação com a bulimia nervosa. É possível haver pacientes obesos que não sofram com episódios recorrentes de compulsão alimentar, apesar de haver associação entre compulsão alimentar e obesidade. Por outro lado, pacientes com transtorno depressivo, bipolar e borderline podem ter diagnóstico de compulsão alimentar também uma vez que os critérios essenciais se sobrepõem.
Frequentemente, o começo desse transtorno ocorre na adolescência ou no começo da idade adulta. A prática de fazer dieta segue o desenvolvimento de compulsão alimentar em muitos indivíduos. A prevalência do transtorno de compulsão alimentar é maior em mulheres e há indícios de influência genética uma vez que parece comum acontecer em famílias.
7. Outros transtornos alimentares especificados
São incluídos todos os casos com sintomas característicos de transtornos alimentares com sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo nessa categoria. Ou seja, aqueles que não se enquadram em nenhuma das categorias anteriores no tocante aos critérios diagnósticos.
É utilizado quando o clínico opta por comunicar a razão específica pela qual a apresentação não satisfaz os critérios para os outros transtornos alimentares. Por exemplo, são os casos de anorexia nervosa atípica, bulimia nervosa ou transtorno de compulsão alimentar de baixa frequência e/ou duração limitada, transtorno de purgação ou síndrome do comer noturno.
Fonte
Atividade: Fichamento do Capítulo de Transtornos Alimentares do DSM-V.
Curso Interdisciplinar: Programa de Transtornos Alimentares – AMBULIM.
Instituição: Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Ano: 2020.
Autora: Solange Ignacio (Nutricionista | CRN 39896).
Referência bibliográfica
American Psychiatric Association (APA). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição (DSM-V). Editora Artmed. 2015, pg.329-54. ISBN 9788138931234.
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